segunda-feira, julho 24, 2006


O Cobrador - Rubem Fonseca

O primeiro livro de Rubem Fonseca que li, A Grande Arte, não me agradou. Achei a linguagem muito vulgar e coloquial.

Certa vez me disseram que podemos não gostar de algo, ou não entender algo, se ainda não estamos preparados para isso quando as portas ainda não estão abertas para nós. E foi esse o caso. Ainda não conhecia muito de literatura a ponto de não entender que muitas vezes a arte e a estética está justamente no vulgar e no coloquial.

Se a literatura ficasse apenas na linguagem refinada e cínica de Machado de Assis, na linguagem poética de Guimarães Rosa ou na linguagem crítica de Eça de Queiroz perderíamos a expressão de uma importante parcela da nossa sociedade: a nossa. Esta parte da sociedade que tenta viver seu dia a dia, seja fugindo do terrorismo do pcc, seja assistindo à novela no fim do dia para se desligar dos problemas, seja ficando irado e soltando tudo o que está dentro da gente em verbos e palavrões. Exatamente como faz Rubem Fonseca em seus livros.

O Cobrador é um livro de contos bem distintos entre si, mas que têm em comum o fato de manterem sempre o seu foco no homem sofrido. Sofrido não pela guerra ou pelas doenças, mas pelo dia a dia, que às vezes exige muito da gente, se alimenta do nosso sangue e da nossa energia psíquica sem nos darmos conta, a não ser quando entramos em colapso. E para representar isso, escolher as palavras certas dentro do mundo coloquial é uma arte, uma grande arte, que Rubem Fonseca exerce com maestria.

O primeiro conto, que dá nome ao livro, é sobre um homem que sai pelas ruas cobrando o que lhe devem. O que lhe devem? Dignidade. Quem lhe deve? A sociedade. Na primeira cena, ele está em um consultório de dentista e se recusa a pagar a conta. Por que ele pagaria alguma coisa se ninguém lhe pagava a dignidade que ele merecia? E naquele momento ele declara que não faz mais parte daqueles que são cobrados, mas dos cobradores. Mesmo que se precise de uma arma para isso porque esse preço custa muita violência e radicalismo.

Nos outros contos, o autor passa pela Guerra do Paraguai, pelo Amazonas, passando pelo Rio de Janeiro, sempre focando figuras banais mas, que olhadas com um pouco mais de atenção, de banais não tem nada.

Não é à toa que ele tem influenciado uma geração nova de escritores brasileiros, como Marcelino Freire, por exemplo, mas que ainda têm que tomar um pouco mais de Toddinho para chegarem aos pés do seu mestre.

Agora sei que vale muito a pena retomar a Grande Arte e lê-lo com olhos mais adultos.


"...a invenção vem da imaginação e a imaginação é um labirinto em que o difícil não é a saída, é a entrada"

"... a medicina não salva ninguém da morte, se todos os médicos desaparecessem a saúde do povo nada sofreria, se não existissem médicos as pessoas seriam obrigadas a descobrir o próprio corpo e saber como ele se comunica com a mente. Ah a cabeça! coisas estranhas temos dentro da cabeça."

"Luísa supõe que sou louco. Loucura e juventude são coisas parecidas, a mente flutua sem limites por espaços e tempos vazios"


trechos do conto H.M.S. Cormorant em Paranaguá


* Rubem Fonseca nasceu 1925, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Mesmo formado em Direito, dedicou sua vida à literatura, com mais de 20 livros lançados, dentre contos e novelas. Rubem Fonseca é conhecido não apenas por sua obra, mas também por ser avesso a conceder entrevistas e ser fotografado, assim como se a aparecer em grandes eventos públicos.

|

quarta-feira, julho 19, 2006



A Confissão de Lúcio - Mário de Sá Carneiro

Mário de Sá Carneiro, assim como Fernando Pessoa, fez parte da Geração de Orpheu. O movimento órfico foi uma revolução da literatura da época, no sentido em que deu voz e luz “a tudo quanto durante centenas de anos jazeu no tenebroso imaginar da nossa alma” (LOURENÇO, p. 143).


Os jovens escritores dessa geração “re-inventaram o caminho e a bússula” (LOURENÇO, p. 144) e guiaram a literatura para um caminho de novidade ética, psicológica e mesmo “metafísica” no momento em que modernidade, com a sua enxurrada de informações, levava as pessoas a um caos interior.

Para tentar encontrar uma saída para esse caos, o caminho era olhar para o mundo interno, entender como o eu é estruturado e como ele poderia se expressar nessa situação limite.

Entrando e mergulhando no seu interior, Mário de Sá Carneiro, novamente como Fernando Pessoa, chegou à fragmentação do “eu” mas, ao contrário deste, não conseguiu completá-la. Seus personagens apresentam fissuras no eu que revelam todo o seu drama interno. Muitas vezes, a fragmentação atinge um grau ainda maior: a pessoa não é formada por duas partes, mas por três ou até mais. Tais estilhaços da imagem mostram a própria confusão mental do sujeito poético.

Em A Confissão de Lúcio, a construção do narrador-protagonista inicia uma fragmentação da narrativa que coincide com a própria fragmentação ou desmembramento da personagem. Em um jogo ambíguo de focalização, o narrador desenvolve um sistema dinâmico que, em um primeiro momento, aproxima Lúcio de Ricardo e, em outro movimento, encarrega-se de fragmentar a imagem de um no outro. O uno é um falso duplo que, para subsistir, deve eliminar o outro.

Dentro dessa confusão mental e íntima, vários planos narrativos se fundem, tudo se mistura, e o subconsciente aparece com um importante papel dentro do todo. Nada estranho, aliás, considerando que as idéias de Freud estavam começando a entrear em voga na época. De acordo com Freud, o homem deve libertar sua mente da lógica imposta pelos padrões comportamentais e morais estabelecidos pela sociedade e dar vazão aos sonhos e as informações do inconsciente.

Neste mesmo período da década de 20, surge o movimento Surrealista em Paris, “oficializado” pelo Manifesto Surrealista, de André Breton. O Surrealismo, a grosso modo, pregava a manifestação e a utilização do inconsciente nas suas obras que abrangiam poesia, pintura, prosa, escultura, fotografia, cinema e intervencionismo.

Ou seja, é dentro deste contexto de fragmentação do eu diante da modernidade, do surgimento das idéias freudianas e do Surrelismo que Mário de Sá Carneiro constrói sua obra. Não é difícil, portanto, entender o porquê do surgimento de atmosferas oníricas em A Confissão de Lúcio. Nelas, o sujeito parece se encontrar entre adormecido e acordado e, por isso, a sua confusão de pensamentos é latente. Para configurar ainda mais essa atmosfera, ocorre uma superposição de planos, o real e o onírico, confluindo para a afirmação de que o eu é o outro.

Interessante também é notar o uso da luz na construção das imagens oníricas: a luz está muito ligado ao universo do sonho, mas também ao universo simbolista. O Simbolismo costuma trabalhar em uma obra os dois sentidos da palavra, o significado e o significante, e aposta em uma sintaxe menos estruturada. Essa desconexão sintática é sutil e faz com que o leitor vá “preenchendo os vazios” durante a leitura. Ora, esse aparente “desconexo” e a distribuição de “brancos” para o leitor evoca ainda mais uma atmosfera de sonho.

A título de curiosidade, um outro exemplo importante da utilização da luz na evocação de uma atmosfera onírica, é a cena do jantar organizado pela americana. Nesta cena, o fogo condensa simbolicamente a novidade defendida pela estrangeira: a voluptuosidade é uma arte e a vida é voluptuosa. A imagem do fogo e da luz aparece sob múltiplas variantes: de alucinação, de quase loucura, do excesso de sofrimento; mas também corresponde à chama do amor espiritual e erótico. Com efeito, o fogo está associado à ideia da rápida transformação do material ao (quase) imaterial.

Bibliografia
LOURENÇO, Eduardo. Tempo e Poesia. Lisboa: Relógio D’Água Editora. pp. 143-168.
CARNEIRO, Mário de Sá. A Confissão de Lúcio. São Paulo: Ediouro, 2002.

|

sábado, julho 15, 2006

bukowsky

esta poema é traduzido do espanhol (por mim) e não direto do inglês, ou seja, muita coisa aqui se perde. estou traduzindo do espanhol porque é a versão que tenho, são umas poesias que comprei no metrô de buenos aires (em buenos aires é assim, os sem emprego não vendem balas, vendem poesia)

Que se dane todo o mundo

A carne cobre o osso
e dentro lhe põem
um cérebro e
às vezes uma alma,
as mulheres jogam
vasos contra as paredes
e os homens bebem
muito
e ninguém encontra
o outro
mas continuam
buscando
de cama
em cama.
A carne cobre
o osso e a
carne busca
algo mais que
carne.
Não há nenhuma
possibilidade:
estamos todos envolvidos
por um destino
singular.
Ninguém encontra jamais
o outro.
As favelas se enchem
os lixões se enchem
os manicômios se enchem
os hospitais se enchem
as tumbas se enchem

nada mais
se enche.

|