terça-feira, dezembro 27, 2005

Uma das coisas mais gratificantes da literatura, para mim, é o "efeito surpresa". Adoro ser surpreendida: uma reviravolta inesperada na narrativa, um elemento surpresa, um sentimento escondido. Quando isso acontece eu fecho o livro e penso: "meu Deus, como eu não havia percebido isso antes?". Adoro cair nas garras do autor.

Tão prazeroso quando isso é descobrir um autor novo (novo para mim, pelo menos). Fico fascinada com o mundo novo que surge na minha frente porque é isso: um autor desconhecido é um mundo novo.

Acabei de ter todas essas experiências com Otto Lara Rezende. Não conhecia sua obra e nem seu estilo. Peguei seu livro de contos "Boca do Inferno" e embarquei.

Os contos deste livro fluem normalmente, docemente, como só os bons escritores conseguem fazer. E como todo bom escritor, Otto Lara não pára por aí: cada conto tem uma virada surpreendente. Ele joga em nossas caras de leitores ingênuos que, ao contrário de um livro, a vida não flui docemente.

As histórias têm crianças como protagonistas, mas não é porque são crianças que as histórias são lúdicas, pelo contrário. Incestos, assassinatos, auto-mutilação, tudo isso acontece no universo infantil. Em "Boca de Inferno", a afirmação de Rousseau de que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe cai por terra. A criança pode ser má por natureza, e se a sociedade a corrompe é para fazê-la pior ainda.

Muitas pessoas que leram este livro ficaram um pouco chocadas e negavam que aquilo tudo pudesse ser viável. Mas quem não me garante que essas pessoas não estivessem falando através de suas repressões? E por que tudo o que acontece nos livros tem que ser viável?

Otto Lara Rezende sofreu com a recepção de seu pai ao livro que o condenou pelo conteúdo, claro. E toda uma crítica da época (e da atual época) fingiu que o livro não existiu. Talvez por isso que muita gente não o conhece e talvez pelo mesmo motivo ele esteja esgotado e ninguém o tenha republicado ainda. Mas escutem o que falo: vale a pena sair uma tarde de sábado para uma caçada nos sebos.

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terça-feira, dezembro 20, 2005


Com o cronograma das aulas do Massi em mãos, eu senti falta de alguém: Nelson Rodrigues. Foi uma falta sentida, não porque eu gostasse de Nelson Rodrigues, pelo contrário. Para mim, suas peças eram repetitivas, não saíam do triângulo assassinato passional-adultério-incesto. Senti falta porque talvez aquela fosse a oportunidade de eu derrubar o meu preconceito, de entender melhor o que foi e o que fez o grande narrador de tabus.

Perguntei: “Massi, por que não vamos estudar o Nelson Rodrigues?”
E ele: “Eu tive que tirar coisas do cronograma por falta de tempo. Como o Nelson Rodrigues estava fora da linha de raciocínio do nosso curso, optei por ele, mas com dor no coração”
Eu: “É uma pena, porque eu não gosto do Nelson Rodrigues e talvez esta fosse uma oportunidade de eu acabar com este preconceito. Estava disposta a isso”
Ele: “Então leia o livro “A Menina sem Estrela”. São as memórias dele, por ele mesmo. Você não só vai entendê-lo como vai até chorar”

Poucos dias depois peguei o livro na biblioteca. De fato, Nelson Rodrigues é tudo aquilo e um pouco mais. Infância sofrida, adolescência sofrida, idade adulta sofrida. Mas não foi só isso. Nelson Rodrigues tinha opiniões fortes, conclusões aparentemente obtusas ou sem sentido:

“Só o profeta vê o óbvio”
“A fome é casta”
“O brasileiro é débil mental, ele cospe uns gênios mas depois começa novamente a babar na gravata”

Mas sempre extremamente certeiro. Porque ele via, ele enxergava as relações humanas de lá debaixo, onde ele estava. E nenhuma vida sofrida tirou essa clareza de visão dele. Nelson tirou a lente cor de rosa que as pessoas insistem em usar e enxergou a vida como ela era. Mas para ele a vida era bonita assim, dura e cheia de reviravoltas; quem vê maldade nisso tudo é a gente, não ele.

Além de tudo, Nelson Rodrigues era poético. Sim, poético. Foi uma grata surpresa ver o mundo através dos seus olhos. Para ele, uma galinha pulando o muro tinha poesia (ele trata disso no livro). O bonde, a rua das prostitutas, a redação do jornal, o sanatório dos tuberculosos (onde ele ficou internado) tinham a sua rima.

Suas tragédias familiares, sua necessidade de aprovação pela crítica, sua amizade e admiração por Manuel Bandeira e Drummond, a fonte de inspiração de cada uma de suas peças, a recorrência da morte em sua vida, está tudo lá, docemente narrado como – que surpresa – só mesmo Nelson Rodrigues conseguiria fazer.

Porque, como disse o Massi, o grande escritor é aquele que não é explicado por nenhuma corrente literária e por nenhuma crítica. O grande escritor é aquele que consegue realizar a sua obra seguindo e ao mesmo tempo derrubando todos os conceitos vigentes na época: você pensava que Nelson era um escritor de peças tabu? Não, Nelson foi um poeta.

Como ele mesmo disse: “Só o profeta vê o óbvio”

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segunda-feira, dezembro 19, 2005

Tenho tentado aprender a fugir da “expectativa”. Não me refiro a uma expectativa específica, mas a qualquer expectativa. Sempre que ela nasce em mim, eu acabo me decepcionando. Ter expectativas de que uma festa vai ser boa, de que o fulano que você vai conhecer em um blind date é uma pessoa interessantíssima e que o seu próximo emprego será melhor do que o atual só pode resultar em nada. Pelo menos para mim é assim. Sempre foi. Mas sempre que estou descompromissada e tranquila as situações e fatos me supreendem e eu fico de queixo caído.

Nesse ano de 2005, que parece ter sido o inferno astral de 99% das pessoas que conheço, não foi diferente. No mar de merda em que eu e muita gente acabou nadando, algumas coisas se salvaram.

E uma delas foi meu curso de Literatura Brasileira 2. O foco do curso era prosa brasileira contemporânea, que eu sou fã, mas que não é exatamente a minha praia. O professor tinha fama de atrasar e faltar muito, mas fazer o quê? “Não tem um professor melhor, então vai esse mesmo”.

Durante a primeira com o Augusto Massi eu estava morrendo de sono e quase desmaiei na cadeira. Ele falava muito sobre Graciliano Ramos, mas eu não conseguia captar muita coisa.

Peguei o cronograma das suas aulas e me surpreendi: vários autores que eu não conhecia e com os quais eu faria meu primeiro contato: Dyonelio Machado, Otto Lara Rezende, Aníbal Machado, Dalton Trevisan, Raduan Nassar, Rubem Fonseca (estes dois últimos eu já conhecia). Ver uma lista de novidades sempre faz com que minhas esperanças renasçam.

O professor começou as suas aulas e foi encantando aos poucos. O Massi é aquele cara que deve ter lido de tudo na vida, mas que não só leu, como a maioria das pessoas fazem. Ele sentiu. A literatura está dentro dele, o Massi exala cheiro de livro. Nas suas análises, ele mistura literatura, sociologia, psicologia, sentimento e vida.

O Massi começou a nos ensinar os passos da crítica literária. O Massi fez com que lêssemos mais de 10 livros para o seu curso (o que nós fizemos com muito prazer). O Massi entrava na sala com um sorriso doce. O Massi entrava na sala correndo, todo afobado por estar atrasado. O Massi nos presenteou com uma série de títulos de crítica literária que devemos ler ao longo de nossas vidas e que nos servirá como primeira referência. O Massi é um cara enrolado e que parece ser gauche na vida, mas como ele mesmo nos disse, para entrar de verdade no mundo da literatura só quem está à margem da sociedade (ser gauche é ser autêntico). O Massi nos leu um conto do Rubem Fonseca e ao terminar a leitura, a sala inteira estava em êxtase. Do lado de fora, um bando de alunos mal educados falavam alto. O Massi abriu a porta e gritou: “Por favor, dá para fazer silêncio? Estamos falando de Literatura aqui” e entrou irado na sala afirmando que para falar de literatura e a gente precisa mergulhar nela. O Massi mergulha na literatura.

Então no triste 2005 algumas coisas se salvaram, sim. E algumas coisas nasceram como o respeito e a admiração por alguém que nos abriu uma nova porta. Sim, de vez em quando nós ganhamos presentes. Sim, de vez em quando a gente se surpreende com a oportunidade de sair maior de uma experiência.

Eu sei que a Literatura é grande mas, obrigada, Massi, por nos dar a certeza de que não estamos sozinhos nessa.

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quinta-feira, dezembro 08, 2005

"La literatura light ha existido siempre. Al lado de Dickens, Balzac o Flaubert hubo otros escritores que hacían novelas dulzonas e irreales.
(...) Tenían su público (ése que ahora ve telenovelas o lee la actual literatura light) ganaban mucho dinero y no creaban ningún conflicto en el mundo literario, los límites estaban muy claramente definidos y ningún escritor verdadero los hubiera insultado porque hubiera sido una villanía. (...) Pero ahora las editoriales han hecho una combinación macabra: convertir a escritores que podrían ser serios, escritores de verdad, en escritores light. Y, en el camino contrario, algunos escritores —y escritoras- que nunca hubieran tenido ningún prestigio porque son muy malos y sólo se manejan en los límites de lo light, son impuestos como si fueran Lampedusa o Stendhal y hablan de James Joyce como de un consanguíneo. No mencionaré a ninguno por no incurrir en villanía con esas pobres almas enfermas de vanidad."

Sérgio Pitol, Prêmio Cervantes 2005

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